Bolsa família: enquanto alguns trabalham, outros usufruem.


Dia desses vi com certa irritação uma foto compartilhada por um amigo meu no Facebook. A foto continha a imagem de um personagem da novela das oito que, fui saber depois, é morador da favela e vive às custas de sua mulher e a trai com a vizinha. Bem, um personagem negro, preguiçoso que é sustentado pela esposa já renderia algumas páginas críticas sobre a imagem que temos do papel do homem e da mulher ou sobre a imagem que temos do negro no Brasil, mas, não é especificamente sobre isso que gostaria de falar.
Abaixo da imagem do personagem, vinha a seguinte frase:
“Bolsa família: enquanto alguns trabalham, outros usufruem.”
Não, essa frase me irrita não porque sou ferrenha defensora dos pobres e das políticas assistencialistas, mas sim porque ela, assim como outras frases do tipo, expressa o profundo desconhecimento e desinteresse do brasileiro sobre sua própria história e sua própria política.
Diferentemente do discurso conservador norte-americano, por exemplo, que sustenta toda sua visão neoliberal sob a perspectiva (burra também) da proteção das liberdades individuais, sinto nesse tipo de leitura sobre as políticas sociais no Brasil um ranço mais perverso: a velha ideia de que pobreza e vadiagem andam juntas.
O discurso de que sempre falta moral e decência no outro (“vadio” e “safado” em potencial) explica todos os problemas nacionais, do congresso até o assalto na esquina, mas, ao mesmo tempo, furar a fila e não devolver o troco dado a mais é totalmente aceitável.
“O que? Eu, trabalhar tanto e pagar tanto imposto para dar dinheiro para vagabundo? Isso é um absurdo! Só no Brasil mesmo!”
A mesma mesquinharia está presente no discurso de quem é a favor da diminuição da idade penal e que acha um absurdo o dinheiro gasto para alimentação dos presidiários brasileiros.
Acontece que, quando você compartilha esse tipo de ideia ou simplesmente deixa com que o mito da vadiagem brasileira se perpetue, por exemplo, está colaborando justamente com a perpetuação das próprias políticas sociais que acha que está criticando, pode acreditar, porque a base do assistencialismo é justamente a ideia de que a massa é burra e dependente.
A bolsa família pode e deve ser criticada. Mas façamos isso de maneira coerente, desconstruindo algumas dessas famosas frases mesquinhas:

“O governo do PT usa o bolsa família só para se promover e ganhar eleição”

Sim, as políticas assistencialistas têm esse caráter político populista. Mas o buraco é mais embaixo. Primeiramente que tal política já havia sido desenhada no governo FHC e, mais do que isso, ela é uma indicação do próprio Fundo Monetário Internacional para países em desenvolvimento.
Sabe por quê?
Porque injetar dinheiro em comunidades pobres é interessante para a circulação do capital. Lição simples de história econômica geral. O governo não está dissolvendo as desigualdades com esse tipo de política, mas está criando condições para o desenvolvimento econômico. E se você é daqueles que acha que desenvolvimento e crescimento econômico são sinônimos de melhorias de vida para a população, é interessante lembrar o que Delfim Neto disse lá no governo militar sobre o esperar o tal do bolo crescer para depois dividir. Estamos esperando o pedaço dos supostos lucros da Transamazônica até hoje e vamos esperar o bolo do pré-sal sentados.
A transferência direta de renda, por outro lado, tem impactos muito grandes para populações que vivem em extrema pobreza e em situações marginais. Se você é daqueles que compartilha fotos de crianças desnutridas, saiba que o Haiti é bem ali e que há sim pessoas que tiveram sua vida melhorada por esse tipo de política. Logo, não é por acaso que o PT tem apoio popular.
Tal crítica, portanto, não toca no verdadeiro ponto político do assistencialismo (seu papel econômico), ao mesmo tempo em que não considera as demandas sociais que sustentam o próprio populismo.

“Não basta dar o peixe, é preciso ensinar a pescar”

Essa expressa uma das principais contradições do neoliberalismo à pururuca e feijão tropeiro: a necessidade de fiscalização de políticas públicas implica em necessidade de funcionalismo público. Mas o funcionalismo público é corrupto…
Como fiscalizar os grupos mais safados da sociedade: o funcionário público preguiçoso e o pobre vadio, que mente para ser sustentado por aqueles que trabalham. Essa crítica está carregada da mesma lógica das demais críticas mesquinhas e é tão rasa quanto.
Sim, há necessidade de fiscalização de uma política social que, em tese, deveria ser transitória. Idealmente, uma política de redistribuição de renda deveria inserir o marginalizado na sociedade. A proposta é tirar o outro da miséria, logo, o ideal é que as pessoas não precisassem, depois de um tempo, do benefício.
Acontece que, como discuti antes, a dissolução das desigualdades de fato não é o objetivo real das políticas de redistribuição direta de renda. Uma estrutura de impostos menos desigual, a responsabilização do Estado pelo suprimento de direitos básicos como saúde e escola, além de um aparato de funcionalismo público suficiente são políticas de um Estado de bem estar social e não de um Estado neoliberal.
O Brasil tem um Estado que intervém nas políticas de juros, que financia o desenvolvimento de empresas, mas não tem uma política de Estado de bem estar social.
Bem, se vamos cobrar do Estado a aplicação eficiente e a fiscalização do programa, antes temos de cobrar eficazes políticas de dissolução da desigualdade e da miséria, de inserção do marginalizado na sociedade.  Pouco importa se as pessoas não precisam mais do benefício se ele é, na verdade, uma forma de fazer o dinheiro circular…

 “Enquanto uns trabalham, outros usufruem”

Por fim, voltamos para a frase que inspirou esse post, porque ela é um resumo da falta de consciência política e do vazio da crítica mesquinha. O que está implícito nessa frase é, na verdade, outra bastante dita:
“Pago tanto imposto e não tenho retorno nenhum.”
As duas reproduzem a ideia do Estado como sangue suga e representam o que costumo chamar de neoliberalismo a feijão tropeiro (o papel do sudeste na perpetuação do conservadorismo à brasileira dá outro post…).
Ora, mas é justamente a política neoliberal que propõe os assistencialismos como placebo e instrumento político-econômico! A ideia de que a estrutura de impostos é um elefante branco inútil é a base dessa mesma política que propõe os programas assistencialistas! Novamente aqui o que alimenta a crítica não é o reconhecimento da ineficácia das políticas sociais ou uma discordância com as orientações políticas e econômicas do Estado brasileiro, mas sim a velha ideia do brasileiro vadio e corrupto por natureza.
Logo, além de reproduzir a forma como a sociedade brasileira se vê no espelho, essa crítica também expressa essa falta de consciência e educação política.
Na verdade, as críticas sobre o programa bolsa família são somente um exemplo das inúmeras leituras inconsistentes e incoerentes que vejo todo dia no Facebook, que escuto no táxi ou no balcão da padaria e que só servem para consolidar as mesmas coisas que elas supõem criticar.
É justamente o conservadorismo burro do brasileiro que tem permitido a reprodução da mesma política burra que se adora criticar.
Fonte:  Papo de homem

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